Foi preciso chegar aos 43 anos, para ler o tão falado, e famoso, "Memorial do Convento", de José Saramago.
Acredito que para cada livro, há um tempo, uma idade, uma maturidade para o ler, e melhor o compreender.
E, se assim não for, muito se perde da mensagem, e da ideia, que nele estão contidas.
Muito passará ao lado, e pouco se entenderá, de tudo o que vier lá escrito.
Por isso, acho que este era o tempo certo para ler esta obra, que descreve a vila onde vivo, e os locais por onde passo diariamente, hoje bem diferentes daquela época mas, ainda assim, reconhecíveis pelo nome.
A história, já a conhecia: D. João V, casado com D. Maria Ana, promete mandar construir um convento em Mafra, se conseguir o tão desejado herdeiro, que tarda em chegar.
A par com esta promessa, a construção da passarola, pelo padre Bartolomeu Lourenço.
E a junção de personagens marcantes, como Baltasar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e Domenico Scarlatti.
Passada na época da Inquisição, da censura e dos autos de fé, esta obra, escrita quase de forma corrida, sem grande preocupação com a pontuação, está carregada de ironia e sarcasmo.
É uma crítica à justiça, à Igreja, à corrupção, à religião, e às crenças.
"Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada...
...havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a
questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não lheexigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo os pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justa justiça deveria vencer cedo, para que tarde perca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de
meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador..."
É uma crítica aos governantes, aos que têm poder, aos que enganam o povo e o fazem acreditar que tudo é pelo seu bem.
"...e assim o preço, que ia baixar, não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia tanto e de sobra. São mistérios mercantis que os de fora ensinam e os de dentro vão aprendendo..."
É uma crítica aos que pensam que tudo o que vem de fora é sempre melhor, tem mais valor e qualidade do que o que é feito em Portugal.
"...se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca. "
Tendo em conta tudo o que tinha ouvido falar sobre o livro, até fiquei surpreendida pela positiva.
Claro que toda aquela descrição das obras da construção do Convento são secantes, não entusiasmam e nos fazem passar à frente, ou ler na diagonal, mas tem vários capítulos que nos fazem querer saber mais sobre o que vai acontecer, e como se vai desenrolar aquela história.
É o caso da construção da passarola. Ou da árdua recolha das vontades em Lisboa, quando a cidade foi acometida por uma epidemia de varíola.
As consequências da guerra na vida daqueles que de lá voltam, com as marcas no corpo e na mente.
Ou os poderes da Blimunda.
Qual será o destino reservado a todas aquelas personagens?
Voará, de facto, a passarola?
Poderá, D. João V, ver a sua obra edificada, antes de morrer?
É um livro que, não sendo daqueles que elegemos como favorito, vale a pena ler!
E com citações que ainda hoje fazem todo o sentido, e se mantêm actuais:
"...ainda ontem se derrubavam muralhas e hoje se desmoronam cidades, ainda ontem se exterminavam países e hoje se
rebentam mundos, ainda ontem morrer um era uma tragédia e hoje é banalidade evaporar se um milhão..."
"...que é nascer, Nascer é morrer..."
"...a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez..."
"...o bem não dura muito, não demos por ele quando veio, não o vimos quando esteve, damos-lhe pela falta quando partiu..."