Se...
Se soubéssemos como tudo poderia mudar em dois meses, talvez tivéssemos estado mais atentos. Ou talvez não...
Se desconfiássemos que o cenário era pior do que parecia, talvez não tivéssemos desvalorizado tanto. Ou talvez não...
Se a minha mãe fosse pessoa de se queixar, ao invés de guardar e calar, talvez as coisas pudessem ter sido diferentes. Ou talvez não...
Se ela fosse pessoa de ir regularmente ao médico, talvez se pudesse ter previsto, ou prevenido, a situação. Ou talvez não...
Se soubéssemos que ela não comia pouco por mera falta de apetite, mas por algo mais, talvez tivéssemos agido mais cedo. Ou talvez não...
Se tivéssemos percebido que não lhe custava a falar por simples falta de um dente ou outro, mas por outra situação mais grave, talvez tivéssemos ganhado tempo. Ou talvez não...
Se não tivéssemos sido tão ingénuos, ao acreditar que as coisas eram menos graves do que são, talvez não estivéssemos agora tão desesperançados. Ou talvez não...
Se ela não se recusasse terminantemente a ir ao hospital e ficar internada, talvez não estivéssemos neste dilema. Ou talvez não...
Quem sabe, se ela fosse, houvesse um hipótese de ser tratada, e reverter a situação. Ou talvez não...
Se...
Se...
Se...
A vida é feita de "se's". E não nos podemos agarrar a eles, como argumento, ou como desculpa.
As coisas são como têm de ser. E nem sempre está nas nossas mãos evitar o pior, ou conseguir o melhor.
Há situações em que não existem decisões melhores, ou piores.
Não existem respostas certas, nem erradas. O que será bom, ou o que será mau.
Existem opiniões diferentes, maneiras de estar diferentes, mas que têm em comum um mesmo fim: querer o melhor para os nossos. Ainda que esse "melhor" chegue de perspectivas diferentes.
As pessoas podem dizer muita coisa, aconselhar, dizer que, no mesmo lugar, fariam isto ou aquilo.
E, ainda assim, nada disso importa, quando a pessoa mais interessada em ficar bem, está consciente, e capaz de tomar a sua própria decisão. Que vai no sentido contrário.
Há cerca de dois meses, a minha mãe ainda estava activa, mais ou menos bem, para a idade.
Depois, algo aconteceu. Algo de que não nos apercebemos.
O médico suspeita que tenha sido um AVC. Mas não pode afirmar com certeza.
Desde então, ela começou com dificuldade em falar. Mas ainda se mexia bem.
Desde então, ela começou a comer cada vez menos. Mas dizia sempre que só comia o que tinha vontade.
E nós deixámos andar. Não vimos. Às vezes, só vemos o que queremos ver, ainda que inconscientemente.
O meu pai queixava-se.
Mas dizia que não valia a pena marcar consulta, que ela não ia.
E as coisas foram agravando.
Na passada semana, estive de férias.
Levei-a ao médico. Consulta de urgência, porque se estivesse à espera da médica dela, só para Outubro.
O médico queria mandá-la para Santa Maria. Ela recusou.
Lá passou umas análises para fazer, e uns suplementos de dieta hipercalórica, para ajudar.
No dia seguinte, foi fazer as análises. Quase não lhe conseguiram tirar sangue.
Está completamente desidratada, e desnutrida.
Precisa de ajuda para subir e descer degraus. Para andar. Para sentar e levantar. Para fazer a higiene. Não consegue comer grande coisa.
Quinta-feira, consulta particular de medicina geral. Para tentar alternativas, soluções que não fossem contra a vontade dela.
Internamento em casa, só depois de passar pelo hospital, de ficar lá uns dias e de se averiguar o que tem, e qual o melhor tratamento a seguir. Ela recusa. Sem esse primeiro passo, não há mais nenhum.
O médico aconselhou a comer papas Cerelac. Uma espécie de "engorda", para ver se não emagrece ainda mais, ainda que já só tenha 29 kilos.
Mas avisou logo: ou ela vai para um hospital, ou "está para breve".
Ela não quer ir para um hospital.
Quer estar em casa.
Ouviu dois médicos, e nenhum a fez mudar de opinião.
Tentei perceber os receios dela. Se estava a desistir de viver. Se achava que já não tinha hipóteses, e preferia estar junto da família. Se o problema era ver-se lá sozinha, e deixar-se ir psicologicamente. Não fala. Não quer ouvir falar.
Explicámos-lhe que em casa pode não conseguir recuperar. Pode acontecer alguma coisa. Pode piorar de dia para dia. Pode mesmo ter que ir parar a um hospital, e depois ser tarde demais.
Mantém a decisão. E diz para sossegarmos.
Irrita-se com a conversa.
Mas, se não tocarmos no assunto, fala de outras coisas. Até se ri.
Vê televisão.
Ainda põe as gotas nos olhos para controlo da tensão ocular.
Vai andando, lá por casa. Embora não saibamos como se aguenta em pé.
E nós, respeitando a sua decisão, estamos à espera, não do "se", mas de quando acontecerá o que não queremos. Porque o mais certo é acabar por acontecer.
E quem nos garante que, indo para um hospital, não seria igual?
Pois...
Por isso, apesar de tudo, não descurem a saúde.
Não menosprezem ou desvalorizem os mínimos sinais. Por mais inocentes ou inofensivos que possam parecer.
Quanto mais cedo se conseguir detectar e agir, mais se poderá evitar.
Fiquem atentos a quem não se queixa. A quem esconde a dor. A quem tende a disfarçar as situações.
Porque são essas as pessoas que, muitas vezes, exigem uma maior preocupação.
Esqueçam os "se's".
Esqueçam as "chantagens emocionais".
Ponham-se no lugar da pessoa.
Tentem perceber o que vai na mente dela.
Oiçam o vosso coração.
E façam o que acham melhor. Ainda que se venha a constatar que não o foi.
Não é fácil vermos alguém que nos criou, que esteve sempre ali para nós, nesta situação.
Uma pessoa que, há uns anos atrás, cuidava da neta. Do marido. Ajudava os filhos como podia.
Pela primeira vez, em 42 anos que tenho, vi o meu pai ir abaixo, e chorar. De tristeza. De impotência.
Ele, que tanto dizia que a minha mãe tinha que estar preparada, para quando ele partisse, arrisca-se, agora a vê-la partir primeiro.
Encaramos cada dia como se fosse, literalmente, o último. Porque um dia poderá ser mesmo.
Mas, até lá, está com a família, na sua casa, no seu ambiente, com os seus programas de televisão, a fazer um esforço para comer o pouco que passa, como decidiu...