"Querida Tica,
Esta foi a segunda noite que passaste fora de casa. Lá fora esteve, mais uma vez, a chover.
Não sei se foi por isso que ainda não regressaste. Ou se estás demasiado assustada para saires de onde estás. Mas, pelo menos, espero que não estejas ferida, e que não seja esse o motivo da tua demora.
Ontem, o avô foi apanhar ervinhas frescas para comeres - por isso não podes estar muito tempo fora senão estragam-se!
Quando me deitei, como de costume, ia arrumar o meu travessão na gaveta, para não andares a brincar com ele durante a noite. Mas percebi que não havia essa necessidade, pois não estavas em casa.
O teu dono escolheu uma foto tua e colocou um anúncio na internet, para ver se alguém te encontra. Estás a ficar famosa! Mas não era preciso sê-lo à custa de tamanha aventura.
Depois, imprimimos folhetos com a tua foto, descrição e contactos, e o dono, juntamente com a Inês, andou a distribuir pelos vizinhos e nos cafés aqui próximos.
Todos nós estamos preocupados e sentimos muito a tua falta. A Inês estava muito triste, mas tentámos animá-la. Afinal, hoje é o dia da sua prova de matemática, e não queríamos que ela tivesse mais preocupações. Já eu e o dono, a continuar assim, ficamos velhos enrugados e engelhados de tanto chorar! Por isso, vê lá se colaboras e não demoras muito tempo, ou já nem nos reconhecerás.
Além disso, sem ti cá em casa, quem vai caçar as moscas? E quem vai descobrir os mais variados bichos de que tenho tanto medo, para os mandar para fora de casa?
Esta noite, no pouco tempo que dormi, sonhei que tinhas voltado e que estavas deitada ao meu lado na cama, como de costume. Mas foi só um sonho. Não voltaste, ainda...
Até o gato da Sr.ª Olímpia sente a tua falta. Estava habituado a ver-te todos os dias na janela. E os passarinhos, que andam por aqui, não têm com quem falar. E como era bom ver-te conversar com eles!
Sei que a rua exercia um grande fascínio sobre ti, tal como tudo o que é proibido mas muito apetecido. Sei que querias experimentar a liberdade que vias os teus companheiros terem. Aventurares-te com eles, e como eles.
Mas, se nunca te demos essa liberdade, não foi porque não gostássemos de ti. Foi, sim, por te amarmos demais para te deixar ir ou para te deixar quebrar o focinho sozinha. Foi para te proteger.
És a nossa pequenina, a nossa princesa bonita, e queríamos o melhor para ti. Ainda queremos.
Sei que te sentias muito sozinha em casa. Passavas muitas horas sozinha mas, podes ter a certeza, fiz o melhor que podia para compensar esse tempo. Todos os dias à hora do almoço ia a casa de propósito para tratar de ti, brincar contigo e levar-te um bocadinho à rua. Aos fins de semana, sentava-me no sofá a ver televisão ou a ler porque sabia que querias colinho, e ali passavas horas a dormir. Quando saíamos, nunca queria chegar muito tarde porque sabia que estavas sozinha em casa. Adorava mimar-te e levar-te à rua como neste domingo, em que estivemos sentadas na cadeira ao solinho por um bom tempo.
Agora, chego a casa e tu não estás... Não é justo. Não faz sentido.
E sabes o que é pior? É não saber o que é feito de ti.
Ainda ontem o teu dono me perguntou se me estava a custar mais agora, ou quando morreu a Fofinha. Quando a Fofinha morreu, também sofri muito. Foram mais de 15 anos com ela. Mas ela estava doente e velhinha. E morreu na nossa casa. Deixou de sofrer.
Contigo é muito diferente, porque és muito nova, e ainda tens muitos anos pela frente para viver connosco. Mas, por tua livre vontade, foste embora. E agora não sei se estás arrependida e não podes voltar, ou se estás mais feliz na tua nova vida. Não sei se arranjaste uma nova família. Não sei se estás viva. Não faço ideia de onde te procurar...Talvez nunca mais te volte a ver e nunca saiba o que, de facto, te aconteceu.
Embora não haja comparação possível ainda assim, agora, sei como se sentem aqueles pais a quem desaparecem os filhos, e nunca chegam a saber o que lhes aconteceu. É triste...
Mas há que ter esperança, e digo-te que tudo está tal e qual como tu deixaste, para o dia em que voltares à tua casa!"