O fim da calçada portuguesa
Não há dúvida de que a calçada portuguesa é um dos grandes símbolos do nosso país.
E, nos últimos anos, temos vindo a assistir ao calcetamento de muitas zonas, principalmente em áreas turísticas e adjacentes.
Aqui em Mafra, por exemplo, no âmbito da requalificação da área envolvente ao Palácio Nacional de Mafra/ Convento de Mafra, vimos o alcatrão ser substituído pela dita calçada.
Se ficou muito mais bonito? Ficou! Se dá uma projecção completamente diferente ao monumento? Dá!
Mas não havia necessidade de calcetar todas aquelas ruas que, num passado mais remoto, sofreram o processo inverso - remoção da calçada para alcatroar.
As calçadas têm os seus inconvenientes:
- não propiciam o uso de saltos altos que, muitas vezes, ficam presos
- com as fortes chuvas, ficamos com uma rua de altos e baixos, buracos que nos convidam a entorses, e poças de água das quais é difícil fugir
- se estiverem bem polidas, ou os sapatos o favorecerem, corremos o risco de escorregar
Eu prefiro caminhar sobre alcatrão do que em calçadas e, sempre que posso, prefiro ir na beira da estrada do que nos passeios - é mais seguro! Já AQUI tinha dado a minha opinião sobre isso. Mas não é só quem anda a pé que se queixa. Circular em veículos automóveis em cima de calçadas também é desconfortável.
Esta terça-feira, a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma iniciativa que prevê a aplicação de medidas para facilitar a mobilidade na capital do país, entre as quais a retirada da calçada portuguesa. Há quem fique satisfeito e aprove a iniciativa, e há quem a condene.
A propósito desta medida, descobri este debate organizado pela VISÃO, em Dezembro de 2013, sobre as vantagens e desvantagens deste piso típico, entre Viviane Aguiar, 37 anos, vestida com padrão a preto e branco, como a calçada que detesta, e Paulo Ferrero, 50, de roupas pardacentas, como o cimento que abomina.
"O que tem contra a calçada portuguesa?
Viviane Aguiar (VA): Não vou tratá-la por calçada portuguesa. Vou apelidá-la, carinhosamente, de pedrinhas do demo, que é a melhor descrição das ditas pedras que nos dão cabo da saúde e dos nervos. São um perigo para a segurança pública, e, nessa medida, não se podendo alcatifar a cidade ou acolchoá-la como nos parques infantis, arranja-se uma situação de compromisso.
Paulo Ferrero (PF): Pedrinhas do demo... [risos] Compreendo que haja muita gente que não gosta da calçada portuguesa, neste momento, como ela está: mal colocada, mal cortada, sistematicamente ocupada por carros. Chegámos a um estado em que realmente... Eu já caí, uma série de pessoas já caiu - sobretudo senhoras, por causa dos saltos altos -, e as pessoas de idade têm dificuldade. Também é preciso ver que há vários níveis de intervenção: nas ruas íngremes é mais perigoso, quando as pedras estão muito polidas ou esburacadas. Aí, não tenho nada contra a mudança da calçada.
Temos aqui um ponto de encontro?
VA: Aparentemente.
PF: Mas pedrinhas do demo não são...
VA: Eu disse isso com todo o carinho.
PF: A calçada portuguesa é um símbolo de todo o País, não só da cidade.
VA: Mas até que ponto devemos mantê-la quando há tanta desvantagem? As calçadas são uma evolução das ruas de terra batida. Acho que devia haver uma terceira etapa de evolução natural para um piso mais consentâneo com o nosso dia a dia, que está, neste momento, a ser posto em causa.
PF: Não, não acho que esteja...
VA: Olhe que eu acho que sim. Experimente pôr uns saltos altos...
PF: [Risos.]
VA: Com todo o respeito!
PF: Como no filme do Almodôvar?
VA: Uma família em que a mãe está de salto alto e tem um carrinho de bebé, em que o pai, coitado, se magoou e anda de muletas...
PF: Os saltos altos fazem mal às senhoras. Fazem mal à coluna.
VA: Mas fazem tão bem a outras coisas das senhoras... E dos senhores.
PF: E não é só o salto alto. É mais o salto de agulha.
VA: Não entremos por aí... A cidade seria tão mais cinzenta se as senhoras usassem chanatos! Não vamos promover a chanatização de Lisboa.
PF: Estamos a falar de vários níveis da calçada. A artística não está em causa. A câmara não vai mexer muito nos pontos turísticos, o que até é engraçado: o turista já pode cair, mas o lisboeta não.
VA: A verdade é que há muitas queixas dos turistas. Dizem: "São tão bonitas, aquelas pedrinhas, mas fazem-nos cair."
PF: Quando fizemos a petição, houve amigos que nos mandaram artigos de estrangeiros a dizer precisamente o contrário, que era um ex-líbris da cidade.
VA: Não temos de pensar nos estrangeiros, mas nas pessoas que andam na cidade diariamente. A calçada é bonita, mas esqueço a beleza quando não é funcional."
Vale a pena rever o debate na íntegra aqui: http://visao.sapo.pt/calcada-portuguesa-essa-horrivel-beldade=f770184#ixzz2tyjaeWEV