Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Marta O meu canto

Guardamos tanta coisa só para nós - opiniões, sentimentos, ideias, estados de espírito, reflexões, que ficam arrumados numa gaveta fechada... Abri essas gavetas, e o resultado é este blog!

Marta O meu canto

Guardamos tanta coisa só para nós - opiniões, sentimentos, ideias, estados de espírito, reflexões, que ficam arrumados numa gaveta fechada... Abri essas gavetas, e o resultado é este blog!

Um mundo à nossa medida

danijela1-1068x712.jpg

Chego à conclusão que vivemos num mundo à nossa medida:

Um mundo desumano, para os (des)humanos que nele habitam.

 

É o mundo que merecemos.

 

Um mundo que nos olha com a mesma indiferença (e descaso), com que olhamos para ele, e para quem dele faz parte.

Um mundo que nos trata com a mesma crueldade, com que o tratamos, e aos seres que nele habitam.

Um mundo que nos paga na mesma moeda, com que lhe pagamos.

Um mundo egoísta, na mesma medida em que os humanos o são.

Um mundo ingrato, perverso, injusto, tal como o são os humanos.

 

Este não é um mundo para seres vulneráveis, e desamparados, para quem se olha de lado, para quem se vira a cara, e as costas, sem nos preocuparmos com o seu sofrimento.

Este não é um mundo para seres puros, bondosos, que nenhum mal fazem, mas a quem os humanos insistem em fazer mal, por pura maldade.

 

Este é o mundo em que os humanos o tornaram.

Um reflexo de si próprios.

Um mundo que, à semelhança de um boomerang, lhes devolve tudo o que lhe atiraram.

Um mundo que, à medida que o vão destruindo, destrói igualmente, e ainda com maior facilidade.

 

É, no fundo, o mundo perfeito.

E, para aqueles a quem se torna difícil viver neste mundo cruel, com o qual não se identificam, e no qual não se reveem, resta esperar que, um dia, um outro mundo, melhor, lhes esteja destinado.

 

 

 

 

 

 

"Amandla", na Netflix

images.jpg 

 

"Amandla", palavra que nas línguas Nguni (angunes) significa "poder", era um grito de guerra e de luta contra a opressão e a segregação racial, também conhecida como apartheid.

A história deste filme começa, precisamente, no Dia da Reconciliação, feriado da África do Sul, em que se celebra o fim da segregação racial e a promoção da reconciliação e a unidade nacional.  

 

É também o dia do aniversário de Impi.

Impi é um rapaz de 11 anos, que vive com os pais e o irmão mais novo, Nkosana, na propriedade dos patrões dos pais. Impi e a sua família são negros. Os patrões, brancos.

Neste dia, a mãe de Impi aconselha os seus filhos a manterem-se longe da "casa grande", onde os patrões darão uma festa e receberão convidados, para celebrar o feriado.

E estes, assim fazem.

 

Ainda assim, os irmãos são abordados por 3 homens brancos, obviamente racistas, que lhes atiram bosta à cara e ao corpo, até que a filha dos patrões intervém, e os faz parar e sair dali para fora.

Elizabeth, uma miúda que pretende, quando for adulta, lutar pelos direitos humanos, é a melhor amiga de Impi e Nkosana. E, nesse dia, acaba por beijar Impi, momento que é observado pelos tais homens, e que lhes atiça ainda mais o ódio pelos pretos, e a revolta pela farsa que o Dia da Reconciliação simboliza. 

 

Este é o ponto de partida.

Como vingança, estes homens matam os pais de Impi e Nkosana, obrigando-os a fugir a meio da noite, sem destino.

No entanto, não diria que este é um filme sobre racismo, mas antes sobre dilemas morais.

Sobre decisões que, em determinadas circunstâncias, as pessoas são levadas a tomar. E que podem transformar completamente uma pessoa.

Impi é o mais velho. Aparentemente, o mais sensato. Aquele que deve tomar conta do irmão. Faz o melhor que pode, com o pouco ou nada que têm, mas nem assim conseguem o que quer que seja.

Nkosana tem dificuldade em perceber as intenções do irmão, e o porquê de estarem naquela situação. Ele está cansado. Tem fome. O irmão prometeu, ainda que em jeito de brincadeira e incentivo, uma boa refeição só que, ao cair da noite, não existe.

E Impi, faz aquilo que o coração lhe mandou - roubou duas garrafas de leite que estavam à porta de uma casa, por onde passavam...

 

Agora, ambos são adultos.

Confesso que, apesar das evidências, inicialmente, troquei os irmãos. Só depois percebi.

Impi é, agora, um ladrão, também conhecido como "o fantasma".

Nkosana, está a formar-se para ser polícia.

Logo aqui, temos um antagonismo.

Para o irmão poder estudar, e ter uma profissão decente, para trazer comida para casa, para terem uma casa, Impi teve que arranjar dinheiro da única forma que soube fazê-lo, embora mentindo ao irmão, afirmando que trabalhava nas minas.

Aparentemente, Nkosana acreditou, e aceitou tudo o que Impi lhe deu.

 

Num dos últimos momentos entre irmãos, ambos são confrontados com essas decisões, acções, reacções, ou falta delas.

Sobre aquilo que sabiam, mas fingiram não ver, aceitando, e usufruindo.

Sobre aquilo que poderiam ter feito de diferente. Sobre escolhas.

Há uma responsabilização e culpabilização mútua e, no entanto, será que algum deles teve culpa?

 

Tenho ouvido muitas vezes que "não se deve fazer pactos com o Diabo" e "não se deve fazer negócios com a Morte". Nunca dá bom resultado. E isso ficou bem latente neste filme.

Numa região onde, mais do que o racismo, existem guerrilhas dentro da própria raça, a sede de poder, e uma constante vigilância e rede de informantes, Impi acabou por se colocar na "boca do lobo".

E, uma vez lá dentro, não há volta a dar.

Impi acaba por ser suspeito de violação de uma estudante, nada mais, nada menos, que a sua amiga de infância, Elizabeth, que sempre o ajudou e defendeu.

Nkosana, sabendo disso, tenta ajudar o irmão a fugir, juntamente com a mulher e a filha, começando uma nova vida longe dali, mas sem conseguir desculpar Impi pelas atrocidades que cometeu, condenando-o pela vida que escolheu.

 

A questão é: escolheu?

Teve hipótese de escolha? 

Escolheu o caminho mais fácil? Ou o único possível?

E agora, terá ainda uma oportunidade para fazer diferente? Para se redimir?

Para viver a vida que sonhava quando era apenas uma criança?

 

Que destino estará reservado a Impi, a Nkosana e a Elisabeth, quando todos os seus sonhos lhes foram, abruptamente, roubados e atirados ao lixo?