Quando recebemos a notícia de que a nossa mãe partiu
É curioso que, tendo já escrito tantas homenagens, não me saiam agora palavras para falar da minha mãe.
Talvez porque tudo o que eu disser será pouco. E porque aquilo que está cá dentro não caberia num só texto. Ou porque talvez seja mais difícil quando são os nossos.
Apesar de, nos últimos tempos, ter previsto este cenário por diversas vezes, é algo para o qual nunca estamos preparados, quando ele se confirma.
Quando acordei, esta manhã, estava confiante. Nada me preparou para o que aí vinha.
Um telefonema da médica, pouco depois das 9 da manhã. Pensei que fosse para me pôr ao corrente da evolução da minha mãe.
Nem quando me disse que a minha mãe tinha um quadro complicado, suspeitei.
Nem mesmo, quando me perguntou se eu tinha mais alguém em casa. Pensei que fosse por ser necessário ir lá.
Só quando lhe perguntei o que iria ser feito, quais os passos seguintes, é que ela me informou que, infelizmente, a minha mãe tinha falecido.
Portanto, ela falou e fez-me falar, já em modo de preparação, para atenuar o choque da triste notícia.
E foi, de facto, um choque. Como, imagino, será para todos os que perdem familiares.
Posto isto, a principal preocupação foi como dar a notícia ao meu pai.
Porque teria que ser eu a dá-la, e não o poderia fazer no estado em que estava, para além de não saber como iria ele reagir.
Depois, avisar familiares, amigos e, a cada telefonema, ou mensagem, reviver as emoções, relembrar o choque, encarar e tomar consciência da realidade.
E tentar não pensar nisso, para não descambar.
Fazer piadas, ocupar com tarefas domésticas.
Momentos intercalados com lágrimas e lembranças.
Até as bichanas perceberam. A Amora veio dar-me turrinhas, como que a consolar-me.
Estava em casa apenas com a minha filha.
Não foi fácil.
Depois, momentos de decisões.
Autopsiar, ou não autopsiar? Para quê? De que adiantava agora saber a causa da morte?
Calhou-me ligar para a médica, e dizer que não queríamos autópsia.
E, em seguida, ligar para a agência funerária, para dar início a todo o processo.
Escolher urnas.
Escolher flores.
Escolher cartões para o velório.
Escolher mensagem.
E aperceber, mais uma vez, da realidade.
É necessário. É uma homenagem. Mas quem é que tem cabeça para essas coisas num momento destes?
Desligar o interruptor.
Há uma filha, as gatas para tratar, o almoço para fazer.
O meu marido chegou entretanto. Tinha ido trabalhar mas, perante a situação, arranjaram alguém para o substituir.
O meu irmão viria também.
Afinal, ainda havia mais trâmites a tratar.
A escolha da roupa para vestir a minha mãe.
É horrível.
Sabemos que será essa a última imagem dela, e queremos dar-lhe a dignidade possível, ainda que nesta hora em que nos despedimos dela.
Mas é voltar tudo ao de cima, olhar para as coisas dela, e um milhão de pensamentos e lágrimas a misturar-se, e a deitar abaixo.
No entanto, é preciso levar a roupa.
Fazer compras.
Limpar a casa.
Desligar o interruptor, e tentar distrair-me é o melhor remédio.
E, se possível, tentar que não toquem no assunto.
A esta altura, final do dia D, em que a minha mãe completa 79 anos e meio, e nos deixa para sempre, já nem sei bem o que sinto.
Mas sei que o pior ainda está por vir.
Amanhã.
Por mim, seria uma despedida rápida, só para nós, e acabava.
Mas sabemos que as pessoas querem dar apoio. Que também se querem despedir. Mesmo que cada palavra, dita com a melhor intenção e sentida, nos faça mais mal que bem. Que seja como um escarafunchar numa ferida que está em carne viva, e que assim não sara.
E, por muito que saiba que vai ser duro olhar para a minha mãe, ou para o que restou dela, sei que quero olhá-la uma última vez.
Não sou dada a religião, mas a minha mãe era católica e, por isso, pedi serviço religioso.
Que, também ele, vai ser duro. Faz parte. E se não aguentar, é sinónimo que sou humana.
E, por fim, o encerrar de tudo.
O momento em que percebemos, definitivamente, que é real, que não a veremos mais. Que, a partir dali, estará debaixo de terra.
Que, ao menos, o seu espírito encontre uma moradia melhor.
A nós, restam-nos dias duros, de mais burocracias que, também elas, são necessárias, e a esperança de que o tempo atenue a dor e o sofrimento dos que cá ficam, com a certeza de que a minha mãe, que partiu, já não sofre mais.
É a lei da vida. Calha a todos. Uns mais cedo. Outros mais tarde. Mas ninguém escapa.
Ainda assim, não deixa de ser sempre pior quando nos toca a nós, e aos nossos.
É tentar agarrar ao que de bom vivemos com ela, com plena noção de que não ficou nada por fazer, dizer ou demonstrar, no tempo que que estivemos com ela.