Lucidez
Pensar que, há muitos anos, era eu que a rejeitava.
Era eu que não queria nada com ela.
Porque ela me fazia lembrar aquilo que eu deveria fazer. O homem que eu deveria ser.
E eu ainda não queria assumir esse compromisso.
Ainda queria viver muitas aventuras e sabia que, a partir do momento em que ela passasse a fazer parte da minha vida, isso chegaria ao fim.
Sabia que precisava dela. Sabia que ela faria parte do meu futuro.
Mas ainda não estava preparado para tê-la comigo.
Por isso, ia alternando, entre uma e outra.
No fundo, ela esteve sempre lá.
Mas eram mais as vezes que a deixava de parte, a um canto, do que as que me permitia estar com ela.
Claro que, um dia, isso mudou.
Estava na hora.
Já tinha idade para ter juízo. E assumi.
Desde então, caminhamos juntos, lado a lado.
Nunca me abandonou.
Nunca me deixou ficar mal.
Tem sido uma grande companheira, e decisiva, nos momentos mais importantes.
Agora, parece-me que isso está prestes a mudar.
Sinto que, de vez em quando, é ela que se afasta de mim. É ela que se ausenta, ainda que por breves instantes.
Como se estivesse a estudar a melhor forma de me abandonar de vez, fazendo-o um pouco de cada vez.
Sinto que, em determinados momentos, ela me falha.
Como se já não quisesse saber de mim.
Como se já não me fizesse falta.
Nesses momentos, sinto-me confuso.
As coisas não parecem as mesmas.
A minha vida não parece a mesma.
Mas, depois, como se nunca tivesse deixado de ali estar, ela volta.
Volta, e faz-me perceber a figura ridícula que fiz, enquanto me deixou.
E sinto-me mal, por estar tão dependente dela.
E por ela me pregar estas partidas.
Ela, que nunca me deixou ficar mal age, agora, como se fosse esse o seu objectivo.
Oh, lucidez...
Porque é que me deixas sozinho, sem rumo, quando mais preciso que me guies?
Porque é que, agora, és tu que me rejeitas?
Logo agora, quando mais preciso de ti.
Porque é que vais, e voltas, em vez de permanecer comigo?
Estarás, tu, a testar-me?
A vingar-te de mim?
Quando estás comigo, não consigo parar de pensar que, quando eu menos esperar, não voltarás mais, e me deixarás para sempre.
E se isso acontecer, o que restará de mim?...