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Marta O meu canto

Guardamos tanta coisa só para nós - opiniões, sentimentos, ideias, estados de espírito, reflexões, que ficam arrumados numa gaveta fechada... Abri essas gavetas, e o resultado é este blog!

Marta O meu canto

Guardamos tanta coisa só para nós - opiniões, sentimentos, ideias, estados de espírito, reflexões, que ficam arrumados numa gaveta fechada... Abri essas gavetas, e o resultado é este blog!

"O Vendedor de Passados", de José Eduardo Agualusa

 

Confesso que talvez não tenha começado a ler o livro com o espírito totalmente aberto a uma leitura diferente do habitual e, por isso, demorei a perceber aquilo que ia lendo, qual o sentido, e qual a relevância.

Por exemplo, logo na primeira página, fiquei a pensar que ser seria aquele que estava a narrar a história: um espírito, um alienígena?

 

Só mais tarde percebi que o narrador era, nada mais, nada menos, que uma osga!

Mas não é uma osga qualquer. É uma osga que ri! Uma osga-tigre, ou osga tigrada. Um animal tímido.

Uma osga que, um dia, já teve forma humana, e que faz, através das suas memórias, e dos seus sonhos, a ligação entre o passado e o presente.

Não sei como é que alguém consegue viver com uma osga em casa, e partilhar com semelhante criatura o mesmo espaço, e uma relação de cordialidade, de tolerância, ou até de amizade. 

Mas digo-vos: eu, conhecida assassina de tudo o que é bicho, fiquei triste com o destino final da dita cuja. Pobre Eulálio!

Até Félix Ventura, o dono da casa onde Eulálio vive, e que lhe deu o nome, que no início estranhava a osga, ganhou-lhe afeição e considerava-o um bom ouvinte, e amigo.

 

Félix é um homem angolano. 

Mas não é um angolano qualquer. É um albino.

E tem uma profissão pouco habitual: é vendedor de passados.

Estamos habituados a quem queira comprar futuros melhores, mas passados?!

 

Passando-se a história em Luanda, no período que sucedeu a guerra civil, e em que a burguesia está em ascenção, é esta que, usualmente, o procura. Porque tem o futuro assegurado, mas falta-lhe um passado glorioso. Um passado que possa ser exibido, contado, mostrado sem vergonha ou embaraço.

Félix cria, então, toda uma genealogia, toda uma história, com direito a fotografias, e acontecimentos, que fabrica através de pesquisas na sua extensa biblioteca, e nos recortes de jornais, e cassetes de vídeo que vai gravando. Suspeito que também colocará um pouco da sua imaginação à mistura.

Talvez até o próprio Félix tenha criado o seu próprio passado. Aquele que ele vai contando, ou deixando escapar em conversa com Eulálio.

 

A história vai-se dividindo entre o que se passa em tempo real, e os sonhos e memórias de Eulálio.

Acaba por parecer, até cerca de metade do livro, uma salganhada de pequenos acontecimentos sem qualquer ligação entre eles mas, como diz o Mascarado, uma das personagens que irá procurar Félix:

"Todas as histórias estão ligadas. No fim tudo se liga. Mas só alguns loucos, muito poucos e muito loucos, são capazes de compreender isso."

 

A primeira personagem a contratar os serviços de Félix é o Estrangeiro, um fotógrafo de guerra que passará a ser José Buchmann. A determinado momento, Buchmann cruza-se com Ângela Lúcia, também ela fotógrafa, e gera-se ali um momento estranho e misterioso, que mais tarde será esclarecido. 

Para além deste estrangeiro, também serão clientes de Félix, o Ministro, que pagará, inclusive, para que Félix escreva as suas memórias, em seu nome, e o Mascarado que, ao contrário de todos os outros, quer um passado discreto e insignificante.

 

"O Vendedor de Passados" é uma história sobre sonho, e realidade. Sobre verdade, e mentira.

Sobre quem fomos, e quem somos, e sobre quem gostaríamos de ser, ou de ter sido.

Sobre como a ficção se entranha por entre a realidade, as memórias e recordações, e passamos a acreditar nelas como verdadeiras. Como se tudo aquilo tivesse mesmo acontecido. Talvez porque a realidade doa mais.

E tem inerente a crítica ao estado do país, consequência da guerra civil.

 

No fim, percebemos como Félix funcionou enquanto elo entre as diferentes personagens. E o sentido da história que não percebemos inicialmente.

 

Entre as várias passagens que li nesta obra de José Eduardo Agualusa, destaco estas:

 

"São os muros que fazem os ladrões."

 

"Um nome pode ser uma condenação. Alguns arrastam o nomeado, como as águas lamacentas de um rio após as grandes chuvadas, e, por mais que este resista, impõem-lhe um destino. Outros, pelo contrário, são como máscaras: escondem, iludem. A maioria, evidentemente, não tem poder algum. Recordo sem prazer, sem dor também, o meu nome humano. Não lhe sinto a falta. Não era eu."

 

"A felicidade é quase sempre uma irresponsabilidade. Somos felizes durante os breves instantes em que fechamos os olhos."

 

"Existem pessoas que revelam, desde muito cedo, um enorme talento para a desventura. A infelicidade atinge-os como uma pedrada, dia sim, dia não, e eles recebem-na com um suspiro conformado. Outras há, pelo contrário, com uma estranha propensão para a felicidade. Estas são atraídas pelo azul, aquelas pela embriaguez dos abismos. Há pessoas destinadas a sonhar (algumas são bem pagas para isso); há pessoas nascidas para trabalhar, práticas e concretas e incansáveis, e há pessoas com jeito de rio, que vão da nascente à foz sem quase nunca abandonarem o leito."
 
 
A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento.
 
 
"A felicidade nunca é grandiosa."