...ou alimentar algo que, bem vistas as coisas, nunca existiu?
Depois de uma vida de intermitências, em que a pessoa, ora aparecia e era tudo muito bonito, ora desaparecia e ficava anos sem dar notícias (o que não era necessário, porque já sabíamos o que teria acontecido para tal), essa pessoa volta a aparecer, mais uma vez.
Não tinha uma boa vida, mas aquela que lhe era possível, dadas as circunstâncias. Quis retomar os laços, as ligações, a família.
Quis voltar a ser o pai que nunca foi, o tio que nunca esteve presente, o irmão que pouco conviveu com os restantes irmãos, o amigo de todos.
Não pensou que, talvez, a essa altura do campeonato, nem todos estivessem dispostos a esquecer, a perdoar, a pôr tudo para trás das costas, a fingir que nada do que aconteceu, aconteceu.
O que é certo é que, desde então, essa pessoa tem continuado a levar uma vida de intermitências, em que ora está bem, ora está mal. Em que num momento tem uma família maravilhosa e são todos muito amigos, e noutro não valem nada, não prestam, e não quer mais saber dela. Para depois voltarem a ser bonzinhos. Para a seguir o tratarem mal. Enfim...
Eu, e mais alguns familiares, deixámos o passado no passado, e reatámos a ligação. Éramos, segundo essa pessoa, a verdadeira e única família que tem neste mundo.
Da minha parte, ligava-lhe algumas vezes. Atendi outras quantas chamadas, em que a conversa e as queixas eram sempre as mesmas. Mas pronto, dá-se um desconto. A idade não perdoa. Ainda estive com essa pessoa duas vezes. Num dos últimos telefonemas, senti que estava com pressa em desligar, não estava muito virada para conversa, e queria despachar-me.
Até que, há uns meses, deixou de dar notícias. Soube, por um familiar, que estava a viver com as pessoas que há tempos atrás não valiam nada. O telemóvel passou a estar desligado.
E eu, sinceramente, pensei: melhor assim.
No início do ano, recebi uma chamada de um número que não conhecia. Era essa pessoa. Na altura contou mais uma das suas histórias, para justificar a ausência de contactos e notícias, não sei se verdadeira ou não. Eu estava com pressa, por isso, disse que depois guardava o número. Nunca mais lhe liguei. Sempre que essa pessoa ligava, eu não atendia.
Entretanto, mudou de número, ligou aos meus pais a dar o novo, e aproveitou para se queixar que eu nunca mais falei e nem atendo as chamadas. Anda a ligar todos os dias, várias vezes ao dia. Não atendo.
Já deveria ter percebido que, se não atendo, é porque não quero falar. E já deveria ter desistido e parado de insistir. Mas não.
O meu pai diz: liga lá, nem que seja uma vez.
Mas a paciência para estar sempre a ouvir o mesmo já começa a escassear. Não sou psicóloga para ouvir queixas e tentar ajudar quem não quer ser ajudado, quem, por mais que se lhe mostre o caminho, insiste em ir por outros.
E se eu ligar uma vez que seja, já não me vai desamparar a loja.
Sim, pode até estar sozinha e essa é a única forma que tem de se sentir menos só na vida. E sim, já teve castigo mais que suficiente para os erros que cometeu toda a vida. E a mim nunca me fez mal algum, e sempre me tratou bem.
No entanto, valerá a pena perder o meu tempo, e retomar uma ligação familiar que, durante anos, basicamente não existiu para, daqui a uns tempos, desaparecer novamente? Ou será melhor cortar definitivamente?
Devo alimentar esta história da família unida e feliz, e armar-me em alma caridosa, para alguém que está só e a viver uma velhice infeliz, atenuando a tristeza dos seus dias?
Ou esperar que desista de vez, e esquecer que essa pessoa existe?
Não quero ser mazinha, nem insensível, mas já me basta viver a minha vida e resolver os meus problemas. Esta pessoa nunca se preocupou nem precisou de nós para viver à sua maneira enquanto pôde. E nós nunca precisámos dela para seguir com as nossas vidas. Porque haveria agora de ser diferente?
Enquanto isso, aí está, mais uma chamada não atendida para a colecção!