A experiência traumatizante de um internamento hospitalar
Ninguém vai, de ânimo leve, para um hospital.
Sobretudo, pessoas com mais idade.
Pessoas que, felizmente, nunca precisaram de estar em hospitais anteriormente.
Pessoas que acham que está na sua hora. E que já perderam alguém, há muito pouco tempo.
O medo/ precaução do Covid tornou tudo ainda pior, se é que isso é possível.
Primeiro dia:
Faz hoje uma semana que o meu pai foi para Santa Maria.
Foi de ambulância.
Passou pelo covidário, tendo sido, depois, recambiado para a zona dos "amarelos". Onde a minha mãe tinha estado, quando a levámos a primeira vez.
Só que, desta vez, não permitiam acompanhantes.
Ou seja, o meu pai, que não tem paciência nenhuma, sabendo que está numa situação não muito famosa, teve que ficar ali dentro, sozinho, horas a fio, juntamente com todos os outros que estavam em situações idênticas.
O meu irmão estava lá, do lado de fora. Mas, num dia inteiro, foi preciso chegar ao final do dia para que um segurança compreensivo deixasse o meu irmão entrar por 5 minutos, e uma enfermeira simpática permitisse que o meu irmão pudesse ficar com o pai durante cerca de 1 hora.
O meu pai ia falando connosco pelo telemóvel. Estava consciente. Sabia que ia ficar lá.
Ver o filho, no meio de toda aquela situação, fê-lo sentir que não estava sozinho. Nem todos tiveram a mesma sorte.
Segundo dia:
O meu pai continuava nos "amarelos".
Pelos vistos, passou lá a noite, e todo o dia de quarta-feira.
Sozinho. Numa maca, provavelmente. No meio da confusão. Já sem conseguirmos falar com ele, porque ficou sem bateria no telemóvel.
Terceiro dia:
A médica informa-nos que o nosso pai passou a noite agitado, e apresentava alguma confusão mental.
Só poderia ser o stress de estar ali internado, pensámos.
A verdade é que, a partir do momento em que uma pessoa está num hospital, começa a perder as suas referências. Toda a sua rotina é alterada. Juntemos a isso a medicação, a saturação, o problema em si, e o estar-se sozinho, sem conseguir falar com ninguém.
O meu pai estava com máscara de oxigénio, a tratar uma insuficiência cardíaca que lhe afectou a parte respiratória e renal e, eventualmente, poderia ter causado danos no cérebro.
Tiraram-lhe o telemóvel porque estava muito agitado. E nós continuávamos sem perceber bem que agitação era essa.
Quarto dia:
Finalmente, o meu pai teria uma visita!
O meu irmão poderia vê-lo, durante meia hora.
Foi nesse dia que percebemos a real dimensão do trauma que o internamento lhe causou. Tal foi o choque.
Quem não o conhecesse, diria que tinha problemas mentais. Fez, inclusive, nesse dia, uma TAC ao crânio.
Embora com alguns momentos de lucidez, logo se escapava para outro mundo.
Achava que ninguém sabia onde ele estava, e que o tinham raptado, e mantido ali preso. O que não anda muito longe da verdade. Tiveram mesmo que adoptar medidas de contenção, à noite, e sedá-lo, para que parasse de gritar, e de se levantar para sair do quarto e ir embora.
Dizia ao meu irmão que tinha que ir para o hospital. Que, na "clínica" onde tinha estado (os "amarelos", supomos), não lhe tinham feito nada.
Quinto dia:
Teve direito a mais uma visita, desta vez, do irmão.
Continuava confuso. Muito debilitado.
Queria ir à rua. Sair daquele quarto.
Sexto dia:
Nova visita, desta vez, da minha prima.
E começámos a ver a luz ao fundo do túnel.
O facto de ir lá gente vê-lo, talvez o tenha acalmado e, acalmando, reduziram os sedativos. Menos "drogado", o discernimento começou a regressar.
Já tinha um discurso mais coerente, embora por telefone, não se percebesse muito, devido à fraqueza dele.
Sétimo dia:
A médica informa-nos que ele já voltou ao normal, estava consciente, coerente, triste por não ver a filha, e farto de estar no hospital.
A TAC não acusou nada.
Está a melhorar e a recuperar do problema, e terá alta em breve, se continuar assim.
Oitavo dia:
Hoje, vai ter a visita do genro.
Vamos experimentar levar o telemóvel dele, que entretanto nos devolveram porque ele não o podia ter com ele, para ele voltar a estar contactável.
Passaram-se oito dias, que pareceram, a ele e a nós, uma eternidade, com alguns sustos pelo meio. No caso do meu irmão, o choque de o ver pessoalmente num estado que nunca imaginaríamos.
Para uma pessoa como o meu pai, cheio de força interior, chegar àquele ponto de os médicos pensarem que ele tinha algum distúrbio mental, imaginem o trauma.
E, da minha parte, ter que passar por tudo isto à distância, por conta do covid. Dependente de notícias de quem lá ia vê-lo, e da médica, com quem tenho falado sempre, ou de auxiliares. Sem poder vê-lo, descansá-lo, acalmá-lo.
Claro que isto não acontece com toda a gente que é internada.
Estava uma senhora, ao lado dele, já mais que habituada a esta andanças, e estava ali na boa, conversando e contando algumas das coisas que tinham acontecido com o meu pai.
Mas pode acontecer a muita gente, sobretudo numa altura em que, aos doentes, é tirado o suporte familiar do acompanhamento, o contacto directo com a família ao longo dos dias, e as visitas são tão poucas, e tão pouco tempo (1 única pessoa por dia, durante meia hora).
Eu, continuo de castigo, à espera do certificado de recuperação, para poder entrar no hospital.
Esperemos que ele venha para casa antes disso.
E que não venha com sequelas psicológicas, de toda esta experiência!